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“Malu Mulher”, um marco das séries brasileiras

Seriado do fim dos anos 70 volta a ser exibido no Canal Viva.

Por: Jonathan Pereira - Contato: [email protected]

Em 1979, Daniel Filho resolveu ousar na TV e criou “Malu Mulher”, protagonizada por Regina Duarte. A série veio em momento oportuno e se tornou um marco na história da teledramaturgia nacional. Temas delicados em tempos de Ditadura Militar como aborto, separação, pílula do dia seguinte e lesbianismo foram levados ao ar até o final de 1980.

Tanto a emissora quanto os autores e o diretor souberam captar as mudanças na sociedade da época – e as dificuldades para que elas se concretizassem. O divórcio (ou desquite, como era mais chamado) estava se tornando comum e muitas mulheres, instruídas a servirem ao marido até que a morte os separasse, tinham de lidar com novos desafios: a independência, conciliar um trabalho com a criação dos filhos sem a presença constante do pai, o aparecimento ou a busca de um novo amor. Tudo isso enfrentando o preconceito que toda novidade causa até ser assimilada.

Maria Lúcia é uma socióloga que, após 13 anos, decide se separar de Pedro Henrique (Dennis Carvalho, assinando ainda com um ‘n’ só e magro). A decisão não vem do nada: além de traí-la, ele não lhe dá a mínima atenção em casa. Malu é questionadora, ao contrário da maioria das mulheres que aceitava passar por isso calada.

Os diálogos do primeiro episódio, “Acabou-se o que era doce”, escrito por Euclydes Marinho, são incríveis para 1979: “Se encostar a mão em mim eu te boto na cadeia”, ameaçava, muito antes de ser criada a lei Maria da Penha. “Mata, mata de uma vez”, grita, ao levar um tapa. “Mulher não pode ser fragilzinha, tem que ser agressiva de vez em quando, saber se defender”, ensina, algumas cenas adiante.

A legalização do aborto e o perigo das clínicas clandestinas foram levantados em “Ainda Não é Hora”, com a participação de Lucélia Santos e Fábio Jr. A estrela de “A Escrava Isaura” (1976)  vive uma jovem que decide tirar do ventre a criança que espera do namorado pois, além de achar que os pais dele não vão aceitar um neto da “filha do porteiro”, a virgindade era valorizada pela família dela. A personagem chega a levantar a mão para o pai, coisa que até hoje na TV é muito difícil de se ver.

O fato de Malu se mostrar a favor da legalização gerou bastante controvérsia. Ela diz frases como “Enquanto não for legalizado, as infelizes das mulheres estão nas mãos deles, mesmo (dos médicos clandestinos). Todo mundo condena, diz que é crime, que é pecado, mas, na hora, todo mundo fecha os olhos porque um dia pode precisar (...) se é necessário, se é uma coisa inevitável, por que não legalizar? Por que não tornar menos sórdido, mais civilizado? Ah!”. Pelos relatos da época, não fosse a censura – tanto interna quanto externa – os roteiros (não esse, no caso, que curiosamente passou ileso pelo crivo dos militares) teriam ido ao ar com ousadias ainda maiores.

Sem a onda do politicamente correto que assola os tempos atuais, tanto Malu quanto Pedro Henrique fumavam na presença da filha Elisa, de 12 anos. Narjara Turetta – que nos anos 2000, pela escassez de trabalho na TV, virou vendedora de água de coco até retornar às novelas alguns anos depois - viveu o auge da sua carreira nesse período. Elisa começou tímida, calada, mas foi ganhando espaço e segurança ao longo da série (vale observar as mil variações de seu corte de cabelo no período).

Como o que ganha de pensão do ex-marido não é suficiente, Malu sai em busca de emprego. Tenta várias coisas, como pesquisa e tradução, mas só na segunda temporada tem um emprego fixo. Em um instituto de pesquisa, ela se demite quando uma colega é demitida por não aceitar o assédio sexual do patrão e protesta por as mulheres terem de se submeter a isso para se manterem no mercado de trabalho. Com a habilidade de misturar dois temas no mesmo episódio, em “A Amiga” Maria (Ângela Leal), a colega que perdeu o emprego, começa a se interessar por Malu.

As duas passam a sair e, numa noite regada a vinho, Maria a coloca na cama, deixando um bilhete no dia seguinte. A cena deixa no ar se rolou algo entre as duas, já que a protagonista estava bêbada. Em outro momento acontece uma aproximação com um quase beijo. Malu não fica em dúvida sobre seus próprios desejos e, esclarecida, entende a sexualidade da outra, sem qualquer preconceito (apenas demora a perceber, como muitos heterossexuais, que há um interesse ali). No fim, a amiga reconhece que confundiu as coisas.

Ainda no esquema de abordar dois temas em uma mesma noite, foi mesclada a primeira mestruação de Elisa com a menopausa da mãe de Malu. A crise dos 30 para a mulher da época, a pressão da família para não ficar “solteirona e dar desgosto” e a luta feminina para deixar de ser vista como “incomum” por não estar mais casada foram retratados.

O discurso sobre política ainda soa atual: “Todos dizem a mesma coisa, mas quando estão lá em cima, são todos iguais”, já dizia. Entre outras ousadias, a equipe consegue mostrar um orgasmo feminino driblando a censura ao exibir apenas a mão de Malu, que se abre em um espasmo durante o sexo com o novo namorado.

Toda essa polêmica movimentava os jornais e revistas da época. “Malu Mulher” foi tema com frequência de reportagens de “O Globo”, “Jornal do Brasil” e da revista “Veja”. Um episódio no qual a socióloga se disfarçava de prostituta para fazer uma pesquisa e era presa foi vetado pela censura. “Malu, a Rainha da Boca do Lixo” só foi liberado quando já não havia mais tempo hábil de ser colocado no ar.

Regina Duarte é “ame ou odeie”. Visceral, dá um show de interpretação indo da euforia à tristeza e nos deixa sem conseguir imaginar outra atriz no papel – mesma coisa que faria poucos anos mais tarde, imortalizando a Viúva Porcina de “Roque Santeiro” (1985). Marília Pêra, que chegou a ser cogitada para ser Malu, faz uma participação como uma mulher que apanha do marido (Gianfrancesco Guarnieri).

A ambientação retrata bem os apartamentos e casas naquele fim da década de 70 e começo dos 80, com azulejos coloridos na cozinha e banheiro, além de muitas plantas na sala de estar e sem exagero de móveis. O tema de abertura, “Começar de Novo”, na voz de Simone, instiga a assistir. A trilha sonora contou apenas com mulheres interpretando as 11 canções, entre elas Gal Costa, Maria Bethânia, Rita Lee, Fafá de Belém e Maysa.

Outros autores que mais tarde escreveriam novelas, como Walther Negrão e Manoel Carlos, assinaram alguns dos roteiros. Dá para reconhecer o texto de Maneco em frases como “amor de primo não vinga. Qual primo nunca se apaixonou por uma prima?”, tema recorrente em suas novelas seguintes, entre elas “Mulheres Apaixonadas” (2003).

O programa foi vendido para mais de 50 países – enfrentando problemas com a censura em alguns deles -, ganhou prêmios pelo mundo e rendeu elogios à namoradinha do Brasil.

No box com 10 episódios em DVD lançado em 2006 – e na volta da série semanalmente desde 4 de maio de 2013 aos sábados no canal Viva -, é possível rever atores como Christiane Torloni, Ney Latorraca, Marcos Frota, Lúcia Alves, Ricardo Blat e Natália do Vale mais jovens. Além de matar saudades de Regina Dourado e Dina Sfat, por exemplo.


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