Com forte retratação histórica e apelo erótico, a obra se consolidou retratando um Brasil cruel e impiedoso.
Por: Emerson Ghaspar - Contato: [email protected]
No dia 17 de setembro de 1996, pela Rede Manchete, ia ao ar o primeiro capítulo de Xica da Silva, a incrível história da escrava que conseguiu independência financeira, se tornando uma rainha, ao se envolver com o homem mais rico das Gerais do Brasil Colônia.
Ambientada no século XVIII, onde Brasil ainda era colônia de Portugal, a trama se passava no Arraial do Tijuco (atual Diamantina), local de extração de diamantes, objeto de cobiça de toda sociedade local. A trama conta a saga de Xica (Tais Araújo), que junto com sua mãe Maria (Zezé Motta), são escravas do Comendador Felisberto Caldeira D’Brantes (Reynaldo Gonzaga), autoridade máxima no local, que foi encarregado pelo Rei de extrair diamantes dos garimpos. Anualmente o comendador deve pagar tributos a Portugal, mas isso não o preocupa já que há uma arca repleta de diamantes que serão entregues ao emissário do rei.
Ao descobrir que o Comendador Felisberto pretendia vende-la para o capitão do mato Jacobino (Altair Lima), para ser meretriz em sua taberna, Xica se alia a Quiloa (Mauricio Gonçalves), um escravo apaixonado por ela e juntos roubam a arca com os diamantes; mas escondem as pedras preciosas para não despertar suspeitas e mais tarde poderem comprar suas cartas de alforria.
Com a chegada do emissário do rei, o Comendador descobre que foi roubado e para descobrir o responsável torturam os escravos, entre eles Xica, que engole um ovo fervente e fica toda queimada por dentro, impossibilitada de falar momentaneamente. Sem ter como dar os tributos ao Rei, Comendador Felisberto vê sua família cair em desgraça, indo cumprir pena em Portugal, perdendo assim todo patrimônio que possuem.
Desconfiada de que poder vir a ser presa, Emerenciana (Khristel Byancco), a esposa do contratador envia sua filha Clara (Adriana Galisteu) para uma casa de parentes fora do Arraial, mas a jovem é descoberta e estuprada por dragões (guardas da época). Desnorteada, Clara fica a vagar pelos rios e é apelidada por Mãe D’Água já que muitos acreditam que ela é uma assombração.
A derrocada do contratador atinge também a vida seus filhos Martim (Murilo Rosa), e Paulina (Maria Clara), que reconstroem sua vida no local, mas perdem o prestigio e são vistos como renegados pela sociedade. Quem mais sofre com a perda do pai, é Martim, que era prometido a Das Dores (Carla Regina, atualmente chamada de Carla Cabral).
Sem prestigio ou dinheiro, Martim não é bem visto pelo pai de Das Dores, o capitão Mor Gonçalo (Eduardo Dusek), que vive a por culpa em Dona Céu (Eliana Guttman) por não ter lhe dado filhos homens, já que assim não poderá levar seu sobrenome adiante. Autoritário e intransigente, o capitão proíbe qualquer envolvimento entre os dois.
Pobre, Martim passa um tempo morando na pensão de dona Benvinda (Mirian Pires), uma velha bruxa que mexe com o ocultismo e que criou seu único familiar, o neto José Maria (Guilherme Piva), um homossexual que enfrenta o preconceito dos moradores locais, que o chamam de “Zé Mulher”. Nessa mesma hospedaria ainda mora Elvira (Giovana Antonelli), uma costureira em busca de um pretendente, mas que acaba se envolvendo com José Maria, criando um triangulo amoroso, junto com escravo Paulo (Deo Garcez). O público torceu para que os três ficassem juntos.
Com a prisão do Comendador e na ausência de alguém que ocupe o posto de contratador de diamantes, Xica é vendida para o Sargento Cabral (Carlos Alberto), que a estupra. A negra se torna escrava de Violante (Drica Moraes), uma moça amargurada, que já perdeu um noivo, sendo conhecida como “a noiva do enforcado” e que é a grande vilã da trama.
Para ocupar o posto do contratador, chega ao Arraial, João Fernandes de Oliveira (Victor Wagner), que acaba se tornando noivo de Violante. Ao ver Xica pela primeira vez, o novo contratador a pede para compra-la, mas o Sargento Mor acaba dando como presente. Na casa do contratador, Xica se recusa a deitar com seu novo dono, mas acaba se apaixonando por ele.
A relação de Xica e João Fernandes não é bem vista pela sociedade, já que eles não são casados legalmente, por ela ser negra e ter mais recursos que uma branca. Apaixonado por Xica, o novo contratador termina seu relacionamento com Violante, que faz de tudo para separa-los. Já os negros não aprovam a união dos dois, pois consideram uma traição a raça. A sociedade hipócrita local é obrigada a conviver com uma mulher que até então não tinha valor algum. Para mostrar seu poder Xica começa a humilhar todos aqueles que um dia lhe fizeram mal, aumentando a tensão no Arraial do Tijuco.
Depois de muito armar e ver que não consegue o desejado, Violante escreve uma carta a inquisição pedindo ajuda pois acredita que está havendo bruxaria no arraial. É enviado então Frei Expedito (Dalton Vigh), que vive uma relação quase amorosa com Violante.
Com o poder da inquisição, João Fernandes não consegue manter seu poder e Xica, após uma armação de Violante, é condenada e julgada por bruxaria. Para retirar a queixa, a vilã pede que o contratador se case com ele ou verá sua amada arder na fogueira.
Para salvar Xica, João Fernandes se casa com Violante e a leva para morar em Portugal, onde a abandona em um castelo após a noite de núpcias e retorna para ficar com Xica, em um final feliz esperado pelo publico
Ambientada no século 18, Xica da Silva não poupou esforços em reproduzir o Brasil da época marcado pela cobiça desenfreada pelos diamantes. Sob pseudônimo de Adamo Angel, Walcyr Carrasco, que em 1996 era contratado do SBT, construiu uma trama repleta de romance, intrigas e mistérios. As abordagens de feitiçarias envolvendo Benvinda não pouparam em efeitos especiais e tecnologia.
Além da grande retratação histórica, os personagens da trama exibida pela Rede Manchete não possuíam um caráter definido em apenas bom ou mal. Xica e sua inimiga Violante eram algumas que possuíam uma dubiedade de caráter. Enquanto a ex-escrava fazia de tudo para ser aceita por uma sociedade hipócrita, chegando ao ponto de esquecer de seus irmãos negros e indo ao extremo de humilhá-los, maltratá-los e até matar quem a traia; Violante mostrava um amor incondicional pelo pai e pelos ensinamentos que lhe foram ensinados. No final, ambas eram vítimas de uma sociedade arcaica, manipuladora e repleta de uma moralidade aplicada apenas a alguns.
Walter Avancini, o diretor da novela, imprimiu uma dinâmica espetacular ao texto, já o autor Walcyr Carrasco mostrou todo o seu talento e não deixou a novela cair no marasmo apesar da quantidade de capítulos: 231. A novela se manteve empolgante, sensual, realista, forte e marcada pelas cenas de violência. Cenas de opressão e agressão física eram constantes, principalmente aos escravos. No primeiro capítulo, o pai de Xica sofre cenas de tortura ao ser pego, tendo os dedos quase quebrados e ao ser obrigado a ficar com a cabeça dentro de um forno quente, porém a cena mais violenta foi à execução de Maria, mãe de Xica. As cenas de violência e eróticas surgiram efeito e a trama se consolidou, marcando média de 18 pontos com picos de 22. A novela anterior Tocaia Grande havia começado com 5 e terminado com 8.
Xica da Silva levou a Rede Manchete, na época já a beira da falência, ao terceiro lugar de audiência. Para isso, a emissora investiu 6 milhões de dólares e construiu em Maricá no Rio de Janeiro a cidade cenográfica de Arraial do Tijuco. Algumas cenas foram gravadas em Minas Gerais e as últimas cenas de Violante em um castelo foram registradas no Palácio do Marques de Pombal em Portugal.
O figurino fiel a época abusou das cores ao criar os figurinos de Xica, enquanto Violante usava cores sóbrias. Já os homens usavam cores diversas sem seguir uma regra, mas que demonstrava de alguma forma a posição social de cada um. Os únicos personagens que tinham uma espécie de uniformes eram os dragões (policiais, representantes da lei) que usavam peças azuis e amarelas. Foram usadas as mais diversas perucas em inúmeras cores, que eram usadas por aqueles que possuíam determinados títulos.
Entre os destaques da trama estão às cenas de nudez, a maioria delas protagonizadas por Adriane Galisteu, interprete de Clara. A atriz Tais Araújo, que na época tinha 17 anos não poderia aparecer nua e a Rede Manchete foi notificada a respeito. Quando a atriz completou 18 anos, Walter Avancini comemorou e após 50 capítulos, Xica apareceu nua. A atriz não gostou da situação e pediu que a direção utilizasse dubles em cenas de nus. A direção acatou a ideia e outras atrizes, bem diferente de Tais faziam as cenas eróticas.
Para encontrar a protagonista, o diretor realizou inúmeros testes para encontrar a intérprete ideal, e Tais Araújo, que estava gravando Tocaia Grande, acabou sendo a escolhida.
Apesar da pouca idade, Tais Araújo não decepcionou como protagonista, mas o grande mérito ficou com Drica Moraes e sua intragável Violante Cabral. A novela contou com as participações de Dona Zica da Mangueira, Leci Brandão, Kiko Zambianchi, Eduardo Dusek, da atriz pornô italiana Cicciolina (Ilona Staller), que em breve participação interpretou uma cortesã que dava golpe no povo do Arraial. Durante a novela, o ator Alexandre Lipiani, interprete do padre Eurico foi vítima de um acidente automobilístico e não resistiu.
Na fase final da trama a Rede Manchete levou ao telespectador a questão: Com quem o contratador deveria ficar: Só, com Xica ou com Violante? Com isso a emissora dava prêmios aos telespectadores que acertassem o final.
A abertura de Xica da Silva causou polêmica ao utilizar imagens da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, que eram animadas e colocavam a atriz Tais Araújo no lugar de Nossa Senhora da Conceição. Alguns devotos se irritaram e ameaçaram processar a Rede Manchete, o que não se confirmou. Na sequência, Xica era cercada por anjos barrocos na cúpula da igreja e alguns deles carregavam os nomes dos atores, no final um deles tentava despi-la e ela sorri maliciosamente. Já a abertura exibida em 2005, quando o SBT adquiriu os direitos de exibição da obra, continha imagens da novela misturada a arte barroca. As trilhas sonoras nas duas eram diferentes.
A trilha sonora original comercializada pela Rede Manchete tinha a atriz Tais Araújo na capa. O álbum tinha a maioria de suas músicas formadas por temas instrumentais. O tema de abertura era Xica Rainha, escrita por Marcos Viana e interpretada por Patrícia Amaral em conjunto com a Transfônica Orkestra. Na versão exibida pelo SBT em 2005 o tema de abertura era Xica da Silva de Jorge Ben, que não fazia parte da trilha original e havia feito parte do filme homônimo dirigido por Cacá Diegues em 1976.
Com a exibição em 2005, algumas atrizes estreantes que hoje fazem parte do grande elenco da Rede Globo puderam rever seus trabalhos. Tais Araújo disse não se arrepender de nada, já Adriane Galisteu afirmou que a experiência foi traumatizante. Durante essa exibição, Giovanna Antonelli processou o SBT, o acusando de não ter pedido autorização para exibição.
Vendida para diversos países, Xica da Silva se tornou um sucesso nos países que foi exibida, entre eles no Chile e México. Em 2015, o jornal 20 minutos elegeu Xica da Silva como a 6° melhor novela do Brasil.
Xica da Silva, exibida entre 17 de setembro de 1996 e 11 de agosto de 1997, foi uma novela que apresentou a realidade de um Brasil, até então não apresentado na TV. Com a direção de Jacques Lagoa, J.Alcântara, João Camargo, Lizâneas Azevedo, sob a supervisão geral de Walter Avancini, a novela é uma obra que merece ser revista por apresentar um país atrasado em seus conceitos e com valores que se apresentam os mesmos vistos nos dias de hoje.
A história da Imperatriz do Tijuco apresenta sem rodeios a dubiedade do ser humano e a escancara diante do poder e cobiça. A trama merece ser revista pelo conjunto da obra, por ser uma história de lutas, da ascensão de uma negra que se tornou importante, mesmo diante do mundo contrário e contraditório em que vivia, afinal não é todo mundo que vai de escrava a rainha. Quem nasce para ser rei nunca perde a majestade e Xica da Silva comprova isso.