Em sua segunda novela contemporânea, a autora criou um faroeste brasileiro com três irmãos em pé de guerra contra um fazendeiro inescrupuloso.
Por: Emerson Ghaspar - Contato: [email protected]
Depois do sucesso relativo com sua novela anterior “Véu de Noiva”, Janete Clair viria escrever a trama que a faria ser lembrada até os dias de hoje, como uma de suas obras-primas, se não a mais importante, a que cultivou toda uma geração, a novela “Irmãos Coragem”.
A autora, com forte inspiração na obras “Três Mascaras de Eva” de Corbertt H. Thigpen e Hervey M. Checkley; “A Pérola” de John Steinbeck; “Mãe Coragem” de Bertold Brecht e “Irmãos Karamazov” de Dotoiévsk, criou a fictícia cidade de Coroado, um local entre a divisa de Minas Gerais e Goiás, onde a disputa por um diamante movimentou toda a trama.
Janete Clair transformou a fictícia localidade para fazer um contra ponto a realidade brasileira daquela época. Assim como o regime militar que torturava e obrigava a todos a seguirem uma ditadura, a autora criou o coronel Pedro Barros (Gilberto Martinho), que manipulava todas as formas de autoridade para que seu desejo prevalecesse. Além disso, o imponente latifundiário utilizava jagunços para amedrontar a população e assim conseguir controlar os garimpos de extração de diamantes, principal fonte de renda local.
Para combater a tirania do vilão, os irmãos João (Tarcisio Meira), Jerônimo (Claudio Cavalcanti) e Duda (Claudio Marzo), que são mais conhecidos por irmãos coragem resolvem desafiá-lo.
O conflito entre o latifundiário e os irmãos aumenta quando João encontra um grande diamante e desperta a ira do imponente coronel. A partir disso, os protagonistas tomam rumos diferentes na vida. João, cansado dos desmandos se torna um fora da lei, Jerônimo entra para a política em busca de ajuda legal e Duda vira um famoso jogador de futebol, que tempos depois volta à cidade.
Paralelo a disputa pelo diamante, os protagonistas tem seu envolvimentos amorosos que conquistaram o Brasil. Jerônimo, que no inicio da novela é apaixonado por Ritinha (Regina Duarte), após ser preterido por ela, acaba descobrindo que sua irmã de criação Potira (Lúcia Alves) o ama, mas não a leva a sério. No decorrer da trama ele ainda se casa com Lídia (Sônia Braga), filha de um deputado e acaba se casando com ela.
Já João Coragem se envolve com Lara (Glória Menezes), filha de Pedro Barros, seu maior inimigo. A moça que no inicio da trama é tímida e recatada, volta à cidade depois de passar um tempo estudando e apresenta distúrbios psicológicos, que a faz desenvolver outra personalidade, a de Diana. As duas são totalmente diferentes e chega a deixá-lo com a certeza de que são duas pessoas distintas.
No decorrer da trama, o garimpeiro acaba se casando com Lara após engravidá-la, mas o vilão só permite que vivam juntos, quando ele tiver condições de cuidar de sua filha e a partir disso começa a armar contra o rapaz. Em uma das cenas mais marcantes da novela, Lara tenta avisar João de uma armadilha de seu pai, acaba se tornando Diana e com o consentimento de um capataz é surrada por um beato, que estava na cidade para exorcizá-la.
Com isso, Lara perde a criança que esperava e aumenta o ódio entre João e Pedro Barros. No decorrer da trama, Lara desenvolve outra personalidade: Márcia, uma mulher forte e segura, que é o meio termo entre Lara e a sensual Diana. No final, há uma operação que definirá a personalidade da filha de Pedro Barros e a personalidade que permanece é a de Lara, que termina feliz ao lado do amado e com um filho.
O caçula dos Irmãos Coragem, Duda é outro que passa por vários envolvimentos amorosos. Após ir embora de Coroado e chegar à capital carioca sem qualquer recurso, o jovem se torna jogador de futebol pelo Flamengo. De volta a cidade natal, o jogador passa a noite com sua namoradinha de infância: Ritinha (Regina Duarte), filha de Maciel (Ênio Santos), o médico alcoólatra da cidade e mesmo sem ter tido qualquer tipo de relação sexual é obrigado a casar com a jovem.
Mas o jogador já era noivo de Paula (Miryan Persia), que é irmã de Hernani (Paulo Araujo), seu empresário e que não aceita ser preterida. A partir disso, Ritinha e Duda partem para o Rio de Janeiro e a moça do interior começa a ser vitima das maldades de Paula, que chega a inventar que está grávida.
Ritinha tem dificuldades ao se adaptar a cidade grande e mesmo sem saber que está grávida, decide voltar para Coroado, deixando Duda no auge de sua carreira. Ao voltar para a cidade natal atrás da mulher, o jogador acaba baleado após tentar impedir a fuga do assassino de seu pai. O jogador é operado as pressas pelo pai da esposa, mas Maciel não consegue retirar o projétil e apresenta a bala extraída de outro paciente.
No decorrer da trama, Duda se recupera e volta a treinar, mas a bala alojada acaba prejudicando seu rendimento e o rapaz acaba tendo seu passe vendido para o Corinthians. Para aplacar as dores, o jogador conta com a ajuda do roupeiro Damião (Arnaldo Weiss), que aplica injeções ilegais. Enquanto isso, Maciel vai ao Rio de Janeiro morar com a filha e acaba preso acusado de ter matado a esposa (o que é verdade) e de não ter retirado a bala de Duda.
Ritinha acredita que a denuncia foi feita por Duda e a situação só complica entre eles. Enquanto isso o caçula dos coragem é alvo de Hernani, que conta a diretoria do time que o jogador usa injeções ilegais para conseguir jogar. Duda então passa por um tratamento e só poderá voltar quando estiver melhor. Nesse período, Ritinha dá luz a filha do casal, que volta a se aproximar.
Por armação de Hernani e pela implicância de Maciel, Ritinha e Duda voltam a se separar. O jogador resolve por um fim em seu casamento e pede o desquite e a guarda da menina. Ritinha então decide voltar a Coroado, onde se torna secretária de Jerônimo. No final, Duda volta a cidade e faz as pazes com a filha de Maciel.
Em contrapartida as histórias de amor dos personagens, a luta pela igualdade e a disputa por um diamante conquistou o público masculino, que pela primeira vez assumiu que assistia à novela. Em ponto alto da trama, Pedro Barros resolve invadir a casa da família Coragem. Liderado por Juca Cipó (Emiliano Queiroz) e Lourenço (Hemilcio Fróes), os capangas invadem o lar e acaba matando Sebastião (Antonio Vitor), pai dos meninos e dando partida para o desenvolvimento de novas tramas.
Nessa invasão, Juca Cipó acaba estuprando Cema (Susana Faini), esposa de Braz Canoeiro (Milton Gonçalves), um negro. A partir disso, Cema se descobre grávida e temendo a reação do marido, não conta que foi violentada, apesar das desconfianças do esposo. A partir disso o casal começa a passar por diversos atritos e a esperar pelo nascimento da criança.
A autora apresentou de maneira inteligente o relacionamento inter-racial, que já havia causado problemas em novelas anteriores. O público não só apoiou o envolvimento de um negro com uma branca, como ficou torcendo para que a criança nascesse negra, o que de fato aconteceu.
Outra história que cativou o público foi a de Juca Cipó, o filho bastardo de Pedro Barros. O jovem era fruto de um relacionamento do coronel com Domingas (Ana Ariel), que após o parto entregou a criança a um senhor. Esse mesmo senhor não conseguiu cuidar do garoto, alegando problemas mentais e resolveu devolve-lo a Pedro Barros, que o criou em meio a selvageria, sem ética e sem limites.
No decorrer da trama, Pedro Barros expulsa a esposa de casa e chama Domingas para morar com ele. A senhora começa a cuidar de Juca Cipó, que logo descobre sua origem e acaba se tornando mais amável, se tornando querido pelo publico infantil que assistia a trama.
Já a ambição desmedida pelo diamante achado por João acaba resultando em vários problemas. Lourenço acaba fugindo com a pedra, mas reaparece morto e com o rosto desfigurado. O público desconhece quem seja o possível assassino e surgem vários suspeitos: João, Lara transformada em Diana e até Pedro Barros, que foi roubado pelo capataz. Mas somente João acaba preso, enquanto Lara é internada em uma clinica e Pedro Barros descobre que sua esposa o traia com Lourenço e a expulsa de casa.
A prisão de João causa problemas para seu irmão Jerônimo, que planeja desistir de sua candidatura a prefeito, mas o garimpeiro convence a todos de que os irmãos estão de lados opostos e acaba fugindo da cadeia, formando logo em seguida um grupo de garimpeiros que se rebela contra a exploração desmedida nos garimpos.
Em meio a brigas e trocas de tiros contra Pedro Barros, João Coragem acaba vencendo inúmeras vezes o coronel, que vê sua fortuna ruir, já que o primogênito dos coragem compra as pedras de outros garimpeiros pelo dobro do preço que o vilão paga. Até Sinhana (Zilka Sallaberry), a mãe coragem vai para o garimpo para proteger os negócios do filho. Já Lara se afasta de João, no intuito de protegê-lo, mas logo fazem as pazes. É nesse período que surge a terceira personalidade de Lara: a jornalista Márcia Lemos, uma jornalista independente, que mesmo sem se lembrar, acaba se envolvendo com João.
No decorrer da trama, Lourenço, que todos julgavam morto, reaparece vivo, mas sem o diamante. Tudo não passou de um plano para despistar Pedro Barros. O capanga havia matado um cúmplice e o desfigurado para poder fugir em paz. Mas durante o processo de fuga, Lourenço havia sofrido um acidente e acabou hospitalizado, deixando o diamante com uma enfermeira.
Dias antes do acidente, Lourenço havia procurado pela esposa de Pedro Barros, na esperança de uma reaproximação, mas ela já estava envolvida com Hernani e juntos tramaram contra o ex- capanga do coronel, o assassinando em seguida.
O irmão de Paula, ainda seduziu a enfermeira que estava com o diamante e a matou, assassinando em seguida sua cúmplice Estela (Glauce Rocha), a esposa de Pedro Barros. Em um plano ousado, João acaba capturando Hernani, que assume todos os seus crimes e acaba preso,com isso o irmão coragem recupera seu diamante.
Na reta final da trama, Jerônimo e Potira, que são vitimas de uma emboscada armada pela policia e acabam mortos. Em uma das cenas marcantes da novela, Potira tenta conversar com a policia, mas é baleada. Em seguida, Jerônimo carrega o corpo da amada enquanto é baleado e morre. A cena teve como trilha a musica tema do filme “Era uma vez no oeste” de 1696, composta por Ennio Morricone, ficando gravada para sempre na cabeça dos telespectadores.
Revoltado com a morte de Jerônimo, João destrói o diamante, que julga ser responsável por todas as atrocidades que aconteceu a sua família e a cidade. Já o vilão Pedro Barros coloca fogo em sua casa, na cidade e se deixa consumir pelas chamas. Na última cena, João, Sinhana e Lara reúnem os moradores para reconstruir a cidade, livre dos desmandos dos poderosos.
Reinventando a maneira de se fazer telenovela, iniciada com sua trama anterior “Véu de Noiva”, “Irmãos de Coragem” apresentou um Brasil desconhecido em grandes cidades e criou um faroeste nacional. Coroado foi a primeira cidade cenográfica da Rede Globo, ocupando um área de 5 mil metros quadrados e tinha oito ruas com diversos estabelecimentos. Fato curioso: Durante um temporal a cidade cenográfica ficou inundada e um helicóptero do jornal O DIA que sobrevoava área fotografou o local e publicou com a manchete de que a cidade estava submersa. Ficção e realidade se misturavam.
Já as cenas de garimpo eram realizadas na serra de Teresópolis. Além disso, foram criadas várias choupanas, com diversos adereços, que formavam uma espécie de acampamento de João, enquanto estava foragido. A produção da novela encontrava vários obstáculos durante a novela e o elenco se deparava com cobras e outros animais nos sets de filmagem. As construções foram executadas na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro.
Os figurinos da trama foram criados por Carlos Haraldo Sörensen e Arlindo Rodrigues em uma época em que os figurinos eram confeccionados somente pela própria emissora. O figurino de João Coragem foi uma exceção sendo comprado na loja Windsor, inclusive seu colete de couro de animal, sua marca registrada.
Cavalos eram muito utilizados nas gravações de “Irmãos Coragem”, já que a maioria dos personagens cavalgava, mas somente Tarcisio Meira sabia realmente manejar o animal. Na época da novela, a atriz Glória Menezes teve meningite e chegou a ficar um mês sem gravar, mas o público não percebeu pois a novela tinha uma frente muito grande de capítulos.
Janete Clair criou o personagem Duda para manter o público urbano da novela e como ele era um jogador de futebol a autora contou com a assessoria do comentarista e jornalista esportivo João Saldanha. Já para desenvolver as personalidades de Lara, Janete contou com a ajuda do neurocirurgião Pedro Sampaio. A autora ainda se preocupava em atender as necessidades dos telespectadores e criava cenas em que os vilões se davam muito mal e heróis se davam bem, isso mesmo antes do final. Anteriormente isso não acontecia.
“Irmãos Coragem” foi a estréia de Sonia Braga na TV Globo, além de unir os casais mais famosos da emissora: Tarcisio Meira e Glória Menezes, além de Cláudio Marzo e Regina Duarte, que saíram antes do fim da novela para estrear “Minha Doce Namorada” as 19h. Durante a novela, Regina Duarte ficou grávida de seu primeiro filho e teve que se afastar da trama, a autora inventou que sua personagem também engravidava.
A trilha sonora de “Irmãos Coragem” foi lançada originalmente em apenas um álbum, que continha os sucessos: “Nosso Caminho”/ Maysa, “João Coragem”/ Tim Maia, “Flamengo, Flamengo”/ Maria Creusa e o tema de abertura “Irmãos Coragem” na voz de Jair Rodrigues, que só passou a ser utilizada a partir do capítulo 31, quando João encontra o diamante. Antes disso, a abertura contava com um tema instrumental. Curiosamente, Claudio Cavalcanti e Regina Duarte tinham musicas cantadas por eles no álbum da novela. As musicas eram temas de seus personagens.
Além de entreter, a autora Janete Clair utilizou a novela para apresentar um micro cosmos do Brasil. Assim como o Brasil que vivia no regime militar, a ditadura era imposta através de Pedro Barros. Para combater o vilão, Jerônimo Coragem tentava entrar para a política e assim como no resto do pais, as eleições eram de mentira, afinal tudo era manipulado. Em ação ousada,os partidos de esquerda conseguiram votos nulos durante a eleição para senadores e vereadores. A população votou fortemente em Jerônimo Coragem, personagem da novela.
“Irmãos Coragem” foi a segunda maior novela da Globo com 328 capítulos, perdendo somente para “A Grande Mentira”, que teve 341 capítulos. A novela foi um sucesso retumbante de publico e critica, tendo audiência maior que o final da Copa de 1970, entre Brasil e Itália, exibida no domingo. O capítulo exibido na segunda-feira foi maior que o final do torneio. A audiência da novela era de 85%, um recorde para a época.
A novela foi reapresenta duas vezes em comemoração: aos 15 e 25 anos da TV Globo em 1980 e 1990 respectivamente. Em 2011, a novela foi lançada em DVD, com 8 discos. Em comemoração aos 30 anos da Rede Globo em 1995, a emissora carioca realizou um remake da novela, dessa vez sem sucesso.
“Irmãos Coragem” é considerado por críticos o maior trabalho de Janete Clair, mas antes de mais nada a autora era uma expert da alma humana, que sabia como ninguém despertar sentimentos e o interesse do telespectador. Talvez seja talento, ou mera criatividade, mas nada pode apagar as novelas de Janete Clair, nossa eterna maga das 8.