Com seu estilo autoral, Gilberto Braga se consagrou no horário nobre ao apresentar uma trama ensolarada e charmosa no Rio de Janeiro dos anos 80.
Por: Emerson Ghaspar - Contato: [email protected]
Há 33 anos, o Brasil conhecia a história de uma cidade ensolarada, em pleno verão e a vida de seus moradores a beira mar, de um modo peculiar. A trama em questão era “Água Viva”, que contava a saga de uma órfã em meio à briga de dois irmãos pela mesma mulher, tudo com o charme característico de Gilberto Braga, que apresentou uma obra contemporânea, inovadora, sofisticada e que acabou criando tendência entre os telespectadores, se consagrando como um grande sucesso popular. Sucesso este que a fez ser a mais votada em uma enquete promovida pelo Canal Viva, voltando a ser exibida a partir de 30 de setembro.
Uma das tramas centrais era a dos irmãos Fragonard: Miguel (Raul Cortez) e Nelson (Reginaldo Faria). Enquanto Miguel é um famoso cirurgião plástico, casado com Lucy (Tetê Medina), pai de Sandra (Glória Pires) e com carreira em ascensão; Nelson é um solteiro convicto envolvido com o pesca e windsurfe, que vive de renda e sem pretensão alguma de trabalhar. A primeira cena da novela é exatamente essa, Nelson voltando da pesca e se preparando para uma competição, sem se preocupar com o futuro.
É exatamente essa falta de interesse pelo futuro que faz Nelson perder todos os seus bens e ter que recomeçar a vida. No início da trama, ele ajuda o amigo Técio (Ivan Cândido) a transferir a empresa para seu nome em um processo de divórcio e acaba ficando sem nada, já que o amigo morre e ele herda vários problemas.
Paralelo aos irmãos Fragonard, está Ligia (Betty Faria), uma carreirista que sonha em entrar para alta sociedade carioca e tenta motivar o marido Heitor (Carlos Eduardo Dolabella) a se tornar um empresário de sucesso. A oportunidade de Lígia acontece quando ela descobre que a milionária Stella Simpson (Tônia Carreiro) vai fechar uma boate para receber seu ex-marido Kleber (José Lewgoy), o que será um grande evento para a sociedade carioca.
É a partir disso que Lígia conhece Nelson e começa a se envolver com ele, acreditando que ele ainda é rico. Enquanto isso, Miguel perde a esposa em uma explosão de lancha e tenta reestruturar sua vida. A morte de Lucy acaba mexendo com a vida dos demais personagens da trama, principalmente com a vida da órfã Maria Helena (Isabela Garcia), que tinha esperanças de ser adotada por ela. Ao descobrir que vai ser transferida para um abrigo de menores, a menina foge e começa a envolver com os demais personagens da trama.
A história de Maria Helena, que havia perdido a mãe e desconhecia o pai, encantou o público, principalmente por sua amizade com a assistente social Suely (Ângela Leal), que tenta descobrir quem é seu pai a todo custo.
O acidente que vitimou Lucy também acabou com a vida de Sérgio (Milton Moraes), primeiro marido de Lígia, que ambiciosa resolve exigir os bens que ele possuía (uma casa em Angra e uma pensão de 50 mil cruzeiros), batendo de frente com Celeste (Arlete Salles), que foi esposa dele durante 4 anos. A cena em que Celeste diz que não quer nada e que a Ligia a convida para morar com ela foi uma das mais bonitas da novela. Diante da falta de ambição de Heitor e da prisão de Nelson, que envolve com contrabando, Lígia se envolve com Miguel, um homem rico que lhe traz o conforto e a estabilidade social. Já Heitor se envolve com Selma (Tamara Taxman), falsa amiga de Lígia.
A única sobrevivente da explosão que vitimou Lucy e Sérgio foi Janete (Lucélia Santos), uma garota batalhadora e contestadora, que não admite a situação de sua família. A jovem é filha do contrabandista Evaldo (Mauro Mendonça) e Vilma (Aracy Cardoso), que vivem à custa de Irene (Eloísa Mafalda), a tia rica e solteirona.
Janete é salva por Marcos (Fábio Jr.), um médico recém formado por quem se apaixona, apesar de seu envolvimento com Sandra. Mas o casal não é feliz por causa das diferenças sociais, os ciúmes e principalmente por causa de Lourdes Mesquita (Beatriz Segall), mãe do jovem.
Em uma cena marcante, Lourdes depois de contratar um detetive para descobrir tudo sobre a família de Janete, exige que a moça se afaste de seu filho ou entregará seu pai a polícia. Janete resiste não desistir de seu amor e ela mesma entrega Evaldo as autoridades.
Sagaz, preconceituosa e opressora, Lourdes Mesquita é a grande vilã da novela. Ela é mãe de Marcos e Márcia (Natalia do Valle), sua sócia em uma empresa de eventos para a elite carioca. Dominadora e arrogante, Lourdes interfere na vida de seus filhos e vive batendo de frente com o genro Edir (Claudio Cavalcanti), um professor de História, que não segue o mesmo pensamento ideológico de mãe e filha.
Lourdes é a grande amiga de Stella, que apesar de se mostrar em alta na sociedade está a beira da falência. A vida da milionária irá mudar com a vida de Maria Helena, já que pretende adotá-la. Stella a partir de então será vitima das armações de Lourdes que usará a órfã para tirar dinheiro da própria amiga. Paralelo a isso, Suely procura pelo pai da órfã e descobre que se trata de Nelson e acaba se envolvendo com ele.
Longe de Nelson, Lígia tenta convencer Sandra de que realmente ama Miguel e de inicio ganha a inimizade da jovem, mas depois a convence de que é uma pessoa boa. Em sua reta final, Lígia resolve adotar Maria Helena, sem que Nelson saiba.
O final da trama também tem o famoso “quem matou” e a vítima da vez foi Miguel Fragonard. O assassino, Kléber, havia matado Miguel pois o mesmo descobriu que ele foi o responsável por Nelson ter perdido tudo e havia ameaçado entregá-lo a policia. Kleber terminou a novela na cadeia, escrevendo um livro de memórias.
O último capítulo de “Água Viva” apresentou algumas cenas antológicas, como a briga de Ligia e Selma no banheiro de uma casa noturna. Cena está que viria servir de referencia em outra obra de Gilberto Braga: Celebridade. Dessa vez, Maria Clara e Laura se enfrentavam.
Nesse mesmo capítulo, Lígia fazia as pazes com Nelson, depois de todos se redimirem de suas ações. A solteirona Irene se casou com o motorista Marcino (Francisco Dantas) e a história dos solitários cativou o público. Assim como Irene e Marcino, o público se apaixonou Stella Simpson e torceu pela excêntrica milionária, que se envolvia com vários rapazes interessados em seu dinheiro, dar a volta por cima e se reerguer. Ela se tornou atriz e entrava no palco em uma das cenas finais da novela.
“Água Viva” foi uma novela que reestruturou a teledramaturgia em vários aspectos e a sociedade brasileira que até então vivia forte influencia dos anos 70. Contemporâneo e arrojado, o autor criou uma obra que revelou tendências e atitudes para toda uma geração, a dos anos 80.
Gilberto Braga fugiu a regra ao criar uma heroína diferente das anteriores, que eram ingênuas, virgens, sonhadoras e dispostas a lutar pelo amor de somente um homem. Pela primeira vez se viu uma mocinha que se casa com quatro homens diferentes, se envolvia com alguns só pensando em dinheiro e mesmo assim o público conseguia torcer por ela. O autor também conseguiu mexer com a sociedade ao apresentar pela primeira vez uma elite totalmente corrompida e que causou diversas reações, como protesto na relação amorosa de Stella com o negro Poti (Haroldo Macedo) ou com Edson (Danton Jardim), que levou as mulheres a torcer por ela.
A novela conseguiu apresentar ao público esportes como windsurf e a volta dos patins a vida dos jovens. Outro destaque foi a concepção de figurinos, que mostrou uma moda chique, leve e elegante, sendo que pela primeira vez apresentou o jeans sendo usado por uma pessoa madura, através de Lourdes Mesquita. Até então, as peças jeans eram associadas a jovens.
A trama de Gilberto Braga revolucionou a debater assuntos como topless, até então algo desconhecido do grande público. Em uma gravação onde estavam Tônia Carrero, Maria Padilha, Maria Zilda Bethlem e Glória Pires e seria gravada uma cena de topless a equipe da novela encarou a rejeição do público que se irritou com a situação. A cena teve que ser gravada em outra praia. A novela também quebrou tabus ao apresentar cenas de sexo antes do casamento, como a de Lígia e Nelson em seu barco e Marcos e Janete que se encontravam sozinhos no apartamento dele. Com muita sutileza e capricho, as cenas não chegaram a chocar.
Durante uma visita ao Brasil para o II Festival Internacional de Jazz de São Paulo, o cantor jamaicano Peter Tosh fez uma participação especial na novela. Ele era uma das visitas na festa de Stella Simpson e suas cenas foram exibidas no capítulo 89.
A novela, segundo críticos da época, também apresentou uma nova forma de galã, através do personagem Marcos, vivido por Fabio Jr, o de estatura mediana e cabelos e olhos castanhos. Outro destaque masculino foi Edson (Danton Jardim), assistente de Miguel, que conquistou o publicou feminino por ser parecido com Clark Gable.
Foi exibido pela primeira vez em uma novela, mesmo que implicitamente o primeiro baseado da TV brasileira. Na cena estava descrito que Alfredo (Fernando Eiras) arrumava alguma coisa, mas foi ao ar o personagem enrolando um cigarro de maconha. A cena foi exibida em 19/03/1980, no capítulo 39. O personagem Alfredo começou pequeno e despontou, chegando a ter um caso com a vilã, Lourdes Mesquita.
Kadu Moliterno, que interpretava Bruno, viveu duas situações interessantes enquanto gravava a novela. Na primeira, ele e Reginaldo fugiram de tubarão durante as gravações. A segunda foi um acidente que sofreu quando ia para uma gravação, o ator conseguiu desviar de alguns veículos, mas acabou batendo.
Gilberto Braga pela primeira vez pediu a Globo a ajuda de um colaborador e a partir do capítulo 57 obteve a ajuda de Manoel Carlos, que vinha do sucesso “A sucessora”, exibida no ano anterior no horário das 18h. A partir de então as novelas começaram a contar com colaboradores.
Com dois álbuns, nacional e internacional, a novela apresentou sucessos como: “Realce” na voz de Gilberto Gil, “Grito de Alerta” cantado por Maria Bethania, “20 e poucos anos” de Fabio Jr. e “Menino do Rio”, cantado por Baby Consuelo, que se tornou marca da novela. Muitos imediatamente remetem à novela a música e vice versa.
A trilha internacional, contou com sucessos de Jimmy Cliff /”Lead me on”, Maxine Nightingale/”Just like you do”, Smokey Robinson/”Cruisin”, Styx/”Babe” e Barry Manilow/”Ships”, que embalaram a segunda parte da novela. Na época era costume se ligar as rádios pedindo determinada música que tocava quando certo personagem aparecia,
Duas semanas antes do fim da novela, a autora Leonor Bassères lançou o livro “Água Viva” com 3200 laudas da novela. A partir de então, a autora foi chamada para ser colaboradora de Gilberto Braga em outras obras. Essa parceria durou até 2003, com o falecimento da autora.
Para homenagear a grande amiga e autora Janete Clair, o autor batizou o personagem de Lucélia Santos com o mesmo nome. Apesar de uma mocinha batalhadora, Janete era ofuscada pelo talento de Beatriz Segall que viveu sua primeira vilã de destaque. Curiosamente esse papel havia sido destinado originalmente a Tônia Carreira, mas a alta direção da Globo decidiu trocá-la.
Em uma época que ainda se vivia o resquício dos findos anos 70, Gilberto Braga apostou em uma trama ensolarada, que prioriza a natureza local do Rio de Janeiro e acabou por ditar novas regras de se escrever novelas e comportamentais na sociedade brasileira ao apresentar personagens notavelmente humanos, com erros, acertos e dispostos a (re) construir a vida. A novela foi responsável por novas atitudes e um olhar sobre uma sociedade que se escondia atrás de novelas com mocinhas frívolas, destinadas a submissão.
“Água Viva” teve o título inicial de “Vento Norte” e foi inspirada no musical americano “Anne”, sendo vendidos para vários países, chegando a se tornar livro na Itália. A novela também foi a primeira novela das 8 a ser reprisada no “Vale a pena ver de novo”, que até então só apresentava novela das 6 e 7. Curiosamente a novela foi levada ao ar mesmo depois de serem veiculadas vinhetas anunciando o retorno de “Elas por Elas” de Cassiano Gabus Mendes.
Escrita por Gilberto Braga, com colaboração de Manoel Carlos, direção de Roberto Talma e Paulo Ubiratan, “Água Viva” teve 159 capítulos e contou uma história que mudou o modo de ver novela, apresentando uma nova expectativa sobre a teledramaturgia nacional. Com certeza vale a pena rever essa novela que mudou a vida de toda uma geração.
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