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O GRITO: O individualismo no horário nobre

Jorge Andrade retratou os dilemas de uma metrópole a partir da vida dos moradores do Edifício Paraíso.

Por: Emerson Ghaspar - Contato: [email protected]

O horário tardio de O Grito, às 22h, permitia que assuntos considerados mais adultos pudessem ser abordados e com isso atraiam as classes A e B, enquanto o público da novela das oito era de B para baixo. A maioria das novelas da faixa era experimentais e atraia o público pelo texto mais caprichado, compensando um audiência não alta. Com essa perspectiva a Rede Globo lançou em 27 de outubro de 1975 a ousada trama de Jorge Andrade.

A trama retratava a vida do homem moderno, com suas neuroses e angústias, na grande metrópole de São Paulo. Os conflitos da trama se desenvolvem no Edifício Paraíso, uma construção de onze andares que foi projetado para ser exemplo de sofisticação, sendo acessível somente a elite paulistana. A proposta original era ter apenas dois apartamentos por andar, mas a idéia vem por terra quando é inaugurado o Elevado Costa e Silva, ou como é mais conhecido, o Minhocão.

Com o viaduto ultrapassando a altura de dois andares do prédio e na expectativa de diminuir a desvalorização do imóvel, Edgard (Leonardo Villar) e sua esposa Mafalda (Maria Fernanda), donos do local e de tradicional família quatrocentona, decidem alterar o projeto original, modificando os andares inferiores, os dividindo em apartamentos de quarto/sala. Com as alterações, no topo estava um luxuoso duplex ocupado pelos donos; abaixo deles, apartamentos de três quartos e nos dois primeiros andares ficavam 12 pequenos apartamentos.

Com moradias diferentes e para classes sociais distintas, a convivência entre os habitantes do Edifício Paraíso, com seus dramas e o individualismo constante, retratava bem a neurose dos moradores de São Paulo. Nesse prédio moravam: o síndico Otávio (Edson França), um homem preconceituoso, intolerante, que cria vários poodles em seu apartamento, mas que não perde a chance de controlar a vida dos moradores, e sua esposa Dorotéia (Reginna Viana), que compensa suas frustrações indo ao salão de cabeleireiro; a estudante de comunicação Marina (Françoise Fourton) e seu namorado, Rogério (João Paulo Adour); o antropólogo Gilberto (Walmor Chagas) que escreve uma tese sobre a cidade de São Paulo e sua mulher, a pintora Lúcia (Isabel Ribeiro). O antropólogo e a pintora são pais de Marina, Bento (Ricardo Garcia) e Guilherme (Guto Graça), que namora a jovem Estela (Lidia Brondi), filha dos esnobes Edgar e Mafalda.

 Além deles no edifício ainda moram: Carmem (Yara Cortes), uma viúva religiosa e severa, que tranca portas do armário e geladeiras com cadeados e que mora com o filho Mario (Roberto Pirillo) e a nora Laís (Suely Franco); Agenor (Rubens de Falco), um jovem bancário que tenta esconder dos seus pais, Branca (Ida Gomes) e Sebastião (Castro Gonzaga), a sua homossexualidade, se mostrando calado durante o dia, mas que a noite fica observando a vida alheia pelos bares da cidade; a atriz decadente Débora (Teresa Rachel) que mora com Albertina (Ruth de Souza), que todos acreditam ser uma empregada, mas que é a verdadeira dona do apartamento;  Francisco (Sebastião Vasconcellos), o zelador que mora com sua esposa Socorro (Eloísa Mafalda) e com a filha Pilar (Elizabeth Savalla), que tenta enriquecer a todo custo e que tenta seduzir Edgard;  a desquitada Kátia (Yoná Magalhães), que é mal falada no local e que é  uma das sobreviventes do incêndio que destruiu o edifício Joelma, em 1974;  e a ex-freira Marta (Glória Menezes), mãe de Paulinho (Marcos Andreas), um menino de 11 anos, deficiente mental que gritava durante as madrugadas .

O menino era o principal conflito que movimentava a trama. Através de seus gritos durante a madrugada, seus vizinhos se mostravam incomodados, os obrigando a tomar consciência dos problemas alheios, o que incomodavam alguns. Essa era a discussão central de O Grito. Alguns moradores se unem e tentam expulsar mãe e o filho do prédio, levantando a questão da intolerância ao outro e a tensão entre os moradores. Marta lutava contra a pressão dos vizinhos e tentava conseguir vários aliados no decorrer da trama.

No decorrer da trama, o interceptador (aparelho telefônico que permitia que as ligações telefônicas fossem monitoradas) do prédio desapareceu misteriosamente. Com se instalou um clima de desconfiança, fazendo com que vários moradores denunciassem ações uns aos outros.

Na reta final de O Grito, Estela foi sequestrada e Paulinho adoeceu. Os fatos serviram para que os vizinhos se unissem e se mostrassem mais tolerantes com a dor alheia. Para resolver os problemas entrou na trama o detetive Sérgio, que só desvendou o sequestro devido a ajuda do ladrão do interceptador. No último capítulo, o ladrão revelou ao detetive que ouviu uma conversa entre o sequestrador e Edgard. Graças a Isso, a jovem foi resgatada e o bandido morto.

No último capítulo, em uma reunião com todos os moradores, vários assumem ter roubado o interceptador, mas apenas Sérgio sabe a real identidade do ladrão. Apesar de todas as provas, o detetive preferiu fechar o inquérito. Os personagens não ficaram sabendo quem era o ladrão, mas o público descobriu que se tratava de Marta.

No meio da reunião, a ex-freira foi avisada de que o filho morreu durante o sono. Todos os moradores se uniram para realizar o velório e a cremação da criança. Nas últimas cenas, Marta, vestida de freira joga as cinzas de Paulinho, enquanto imagens de São Paulo apareciam. Gritos de Paulinho foram ouvidos enquanto a câmera passeava por sobre os prédios da metrópole, sobre a imagem paralisada surgiu o seguinte texto: E a semente vai germinar, brotar, crescer, florescer e dar frutos. Seguido do FIM.

Jorge Andrade escrevia O Grito após escrever a bem sucedida Os Ossos do Barão, em 1973. A trama tinha uma caprichosa produção e um texto afiado a um elenco de grandes estrelas da Rede Globo, mas nem isso foi capaz de salvar a obra das criticas e do público que desistiu de ver a trama. O autor ainda abordou outros temas como: desumanização, falta de privacidade, preconceitos, indiferença, isolamento, poluição e preconceito contra deficientes mentais, mostrando a vida de quem reside em grandes metrópoles. Outro fator que serviu para afugentar o público foram às diferenças com sua trama anterior, Gabriela, que possuía um ar mais alegre. Com um ar pessimista e quase claustrofóbico, o Grito fez o publico ir dormir mais cedo.

O Grito gerou controvérsias em vários lugares do Brasil. No Rio de Janeiro, moradores de um prédio tentaram expulsar uma criança excepcional e os moradores de São Paulo alegaram que o autor queria denegrir e distorcer a imagem da cidade. Jorge Andrade rebateu as críticas dizendo que estava mostrando a metrópole como ela realmente era: “Dura, Fechada, Fria”. Os protestos contra a imagem da cidade foram parar no Congresso, onde o então deputado federal Aurélio Campos fez um pronunciamento contra o que ele qualificava como distorção da imagem de São Paulo.

A trama teve várias gravações espalhadas pela cidade de São Paulo. A fachada do  Edifício Paraíso da trama foi construído em frente ao prédio da TV Globo, no Rio de Janeiro.

A atriz Elizabeth Savalla engravidou durante a trama e manteve a gravidez  em segredo sem alterar o desenvolvimento da trama . A novela também marcaria a estréia de Lidia Brondi, então com 16 anos, em novelas da TV Globo.

Gloria Menezes atuava depois de muitos anos sem o marido Tarcisio Meira. Para compor sua personagem Marta, a atriz adotou cabelos curtos e quase não utilizou maquiagem, o que deu um ar mais sofrido a protagonista da trama. Outro destaque da trama foi Yoná Magalhães, que apesar de viver a sofrida Kátia, protagonizou uma das cenas mais polemicas da trama. A sobrevivente do Edifício Joelma tirava a roupa na sacada de seu apartamento e causava um congestionamento no Minhocão.

No livro Um internacional ator brasileiro – Rubens de Falco, da Coleção Aplausos, o ator comentou seu personagem: O meu personagem era um diretor do Banco do Brasil. Passou a ser funcionário, porque diretor do BB não pode ser dúbio (naquela época, pelo menos, não podia), e ele era castrado, tanto pela mãe que o protegia muito, quanto pelo pai que achava que ele não era homem. Durante a semana, era um homem normal, mas, toda sexta-feira, saía pela Av. Ipiranga com a São João, vestido de uma maneira muito estranha, para ‘ver’ as pessoas. Era mais um voyeur do que qualquer outra coisa. Quando voltava para casa, se trancava no quarto e o quarto era uma jaula de leão e ele ficava andando de um lado para o outro com um leão enjaulado, tamanho era o desespero de não conseguir dar um sentido à sua vida. Acabava sempre no telefone, falando com o CVV; só aí ele se acalmava.

Jorge Andrade conseguiu fazer com que o público não percebesse, mas a trama se passava em uma semana. Começava numa sexta-feira e acabava no outro domingo. Dessa maneira, o autor contou a trama de O Grito em 125 capítulos.

A trilha sonora de O Grito foram formados por dois álbuns, o nacional e o internacional, todos com algum imagem da cidade sobreposta pelo logotipo da novela. No disco nacional, que continha 11 faixas, as musicas de maior destaque são: Lá Vou Eu/ Rita Lee, Um Por Todos/Elis Regina e A Lua e Eu/Cassiano. O tema de abertura era a instrumental O Grito/ Victor Assis Brasil. Curiosamente, o compositor da trilha de abertura assinava mais duas musicas no mesmo álbum.

A trilha internacional tinha os sucessos: Breezy/ Jackson Five, Inseparable/ Natalie Cole, Fly Robin, Fly/ Silver Convection, Times Is Over/ Harris Chalkitis,  Hey Girl (Tell Me)/ Bobby Wilson, So In Love With You/ Leroy Hutson e Island Girl/ Elton John.

Escrita por Jorge Andrade com direção de  Walter Avancini, Roberto Talma e Gonzaga Blota, O Grito é o clássico exemplo de novela que não foi enorme sucesso pela maneira que foi abordada e talvez merecesse um remake no horário das 23h da Rede Globo, seja pelos temas, cada vez mais em alta, devido a tecnologia e maneira como ela aproxima e afasta as pessoas ao mesmo tempo. Se em 1975, o autor quis mostrar que por morarem nas grandes cidades as pessoas não tem o contato humano, imagine uma nova roupagem onde a tecnologia reúna as pessoas no mesmo lugar, mas os distancie através da rede.

O Grito com certeza era uma novela errada, na hora errada, porem não é tarde para falar sobre ela. Talvez hoje sejamos nós que precisamos gritar contra a nova forma de individualismo.

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Na próxima edição mais uma trama que não foi um sucesso, mas que merece nosso respeito e atenção.


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