A crônica policial quando recriada no cinema, costuma expôr quantidades cúbicas de sangue e testosterona, como se na justificativa de atribuir ao confronto entre lei e crime características de virilidade e barbárie.
Em “República dos Assassinos” (1979), um dos clássicos do cinema policial brasileiro – gênero único, original, e tal como os giallos italianos e os krimis alemães, merecedor de ser estudado à parte do resto da cinematografia do país –, temos a subversão deste “mandamento macho”, sendo aqui o herói justiceiro, íntegro e por quem torcemos incondicionalmente, nada mais nada menos do que um travesti, a poderosa Eloína, o melhor papel das três dezenas que um gigante, Anselmo Vasconcellos, ergueu em sua fabulosa carreira cinematográfica.
Quando Aguinaldo Silva e Miguel Faria Jr. – auxiliados por Leopoldo Serran – trabalharam na adaptação cinematográfica do livro “A República de Assassinos”, da autoria de Aguinaldo, talvez não tenham se dado conta da preciosidade que existia ali. Não me refiro unicamente à linha-mestra do roteiro – contar através do drama de Eloína a saga do grupo “Homens de Aço”, facção do Esquadrão da Morte, formado por policiais de elite para o extermínio de bandidos. Refiro-me à poesia fílmica que nasceria no momento em que o texto foi concretizado nas telas, numa ode ao que o cinema brasileiro tem de melhor: a vibração, o talento, a vida plena, esboçada em uma galeria de personagens inesquecíveis.
Como sinopse, “República” narra em 100 minutos a eclosão de uma forma milicialesca de se fazer justiça. Policiais corruptos, bandidos idem, imprensa idem. Mateus Romeiro (Tarcísio Meira), Alcino (Vinícius Salvatori), Gringo (Milton Moraes), Erasmo (Paulo Villaça) e Lacerda (Ivan de Almeida) fazem parte do primeiro grupo. José Maria Duarte, vulgo Eloína (Anselmo Vasconcellos), travesti e diva, amasiado com o puxador de carros Carlinhos (Tonico Pereira), fazem parte do segundo. No entorno, a imprensa sensacionalista, a figura do Dr. Gilberto Martins (José Lewgoy), proprietário do jornal “O Diário Carioca” – fonte permanente dos factóides plantados para mitificação dos policiais –, pai da cocota Regina Martins (Sílvia Bandeira). Por sua vez, ao lado do psicopata-mor Mateus Romeiro, estava Marlene Santos Graça (Sandra Bréa), atriz de cinema, cantora de night-clubs. Em off, ocasionalmente narrando, Paulo César Peréio.
Ambienta-se parte da ação no bairro da Lapa, Rio de Janeiro, quando nos primeiros minutos de projeção os Arcos são estampados sob o impacto da música de Chico Buarque e Francis Hime. “Não sonho mais”, interpretada por Elba Ramalho – por sinal, aparece rapidamente como mendiga, assediando Regina – ou apenas no instrumental, é o exemplo clássico de canção que se imbui do espírito de um filme. São indissociáveis, nutrindo-se do apelo emocional que ambos possuem.
Inserida a música, temos a deixa para adentrar o Hotel Monte Blanco, espelunca em que Eloína e Carlinhos se amam, beijam-se na boca – sem falsos pruridos –, se entregam pro mundo, aplicam o célebre “golpe do suadouro” nos transeuntes e, sobretudo, é o local que marcará a ida de Carlinhos ao cadafalso, escorraçado de lá pela dupla Romeiro-Alcino, para ser desovado em um lugar deserto.
À morte de Carlinhos acompanharemos o endurecimento da figura de Mateus Romeiro, o truculento desajustado. Sua acompanhante, Marlene, mal desconfiava, mas ao se tornar objeto de cena para Mateus, engravidar e, anos depois, tornar-se fanática religiosa, consistia em apenas uma parcela das loucuras de Romeiro. O sub-playboy ainda se envolveria com Regina, iniciada no pó pelo próprio pai, a quem ela, de tempos em tempos, apreciava mostrar os seios e provocá-lo lubricamente.
A estrutura do filme ressalta uma certa idéia de documentário, como uma camada subjacente para exposição da biografia de Romeiro. Os personagens mais relevantes (como Eloína e Marlene) estão no presente (1979), lembrando-se do término da equipe – desmontada por seu idealizador, Clemente (Ítalo Rossi), funcionário de segurança pública do Estado, após comoção popular incitada pelos jornais.
A correria e multitude de plots alinhavados, cenas e diálogos antológicos, constroem uma unidade cuja coerência joga a favor de cada participante do filme. O bissexualismo de Romeiro – que vem à tona para assustar quem presumia facilidades na trama – é de fato perfeito, porque aplica aos chavões do cinema-macho outro golpe de morte. Eloína, a heroína que não queria sê-lo, mas que o é por amor ao namorado morto, mostra-se ao longo de toda a fita um dos personagens mais irriquietos e profundos de que já se teve notícia na ficção cinematográfica mundial. Cúmplices, sorrimos ao assistir o desempenho sublime de Vasconcellos, colocando-nos frente a frente à soberba diabólica da vedete, tal como no momento em que ela depõe num dos inquéritos envolvendo Romeiro:
“O senhor não está aqui pra ouvir coisas escabrosas? Mas, doutor, olhe bem pra mim. Eu sou uma coisa escabrosa. Pra que então que o senhor me mandou vir aqui?”
Alheiando-se do moralismo de casaca, das falsas construções estilísticas que inventam personagens vazios, a obra de Miguel Faria Jr. é um colírio a ser consultado de tempos em tempos. O público, agradecido, delicia-se e celebra em “República dos Assassinos” um marco, uma viagem alucinada e um épico, delineado, com paixão, no âmago da aventura e da condição humana. “Cidade de Deus” e “Carandiru” que nos perdoem, mas “República dos Assassinos” este sim, é o divisor de águas do orgulho da violência e da bestialidade nacionais.
Créditos: Andréa Ormond
A REPERCUSSÃO DO TRECHO DO FILME NO PROGRAMA DO JÔ"
Conforme o site informou anteriormente, na última quarta-feira (20), o "Programa do Jô" exibiu o primeiro beijo gay na Rede Globo, depois de muita polêmica sobre o assunto nos capítulos finais da novela de Aguinaldo Silva, "Duas Caras".
Durante uma entrevista com o ator Wagner Moura, que estréia a peça "Hamlet", em São Paulo, Jô Soares mostrou um beijo caloroso entre Tonico Pereira e Anselmo Vasconcelos no filme "República dos Assassinos" de autoria do próprio Aguinaldo Silva.
Wagner Moura atua em "Hamlet" com Tonico e comentou, em clima descontraído, que Jô teria as imagens do beijo gay em que o colega foi protagonista e pediu para ver a cena. Jô Soares colocou o vídeo, enquanto Moura fazia comentários ao assistir a atuação do companheiro de peça.
Se em “Duas Caras” o autor não conseguiu levar ao ar a cena do beijo gay, depois de 20 anos, Aguinaldo viu a cena de seu filme levada ao ar na emissora que até poucos dias afirmava que jamais uma cena de beijo entre iguais iria ao ar em sua programação.
Pode uma coisa desta?